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O Belo Terno, de H. G. Wells

por H. G. Wells (trad. Juliana Pavão)
Foto de Luísa Machado para o texto "O Belo Terno", de H. G. Wells, traduzido por Juliana Pavão.

Herbert George Wells, conhecido como H. G. Wells (Bromley, 21 de setembro de 1866 –Londres, 13 de agosto de 1946), foi um escritor britânico e membro da Sociedade Fabiana.

Juliana Pavão nasceu no Rio de Janeiro no final dos anos 80, mas anda escondida em São Paulo desde 2018. Tradutora de audiovisual e literatura, às vezes escreve, nem sempre publica.


Um dia, existiu um rapazinho que ganhou um belo terno de sua mãe. Era verde e dourado, de uma costura tão delicada e elegante que mal consigo descrever, e tinha uma gravata ocre aveludada no pescoço. Os botões novinhos brilhavam como estrelas. Estava tão orgulhoso e satisfeito com o novo traje que se prostrou diante do espelho quando o vestiu pela primeira vez, tão maravilhado e radiante que não conseguia desviar o olhar. Queria usá-lo a todos os lugares, mostrá-lo a todo mundo. Pensou em todos os lugares que já havia visitado, em todos os locais que já lhe haviam descrito, e tentava imaginar a sensação de ir a esses lugares agora usando seu novo terno brilhante e desejava sair e caminhar logo pela grama alta, sob o forte sol do campo, vestindo-o. Apenas para usá-lo! Mas sua mãe o proibiu. Ela disse que deveria cuidar muito bem daquele terno, pois jamais teria outro tão elegante. Deveria guardá-lo e cuidá-lo, vesti-lo somente em ocasiões especiais. Esse seria o traje do seu casamento. Ela envolveu os botões com lenços de papel, temendo que aquele brilho se perdesse, protegeu os punhos e os cotovelos e onde mais julgava que poderia danificar-se facilmente. Ele odiou e opôs-se a tudo isso, mas o que poderia fazer? Por fim os alertas e a persuasão da mãe surtiram efeito e ele concordou em retirar o terno, dobrá-lo nos devidos vincos e guardá-lo. Foi como se o estivesse devolvendo. Mas sempre pensava em vesti-lo, e sonhava com as ocasiões especiais em que poderia usá-lo sem as proteções, sem os lenços de papel envolvendo os botões, completa e integralmente, sem preocupar-se, belo fora do normal.

Uma noite, enquanto sonhava com o terno, como de costume, sonhou que removia o lenço de papel de um dos botões e o encontrava levemente opaco, o que o aborreceu bastante. Ele polia e polia o pobre botão embaçado, mas ele ficava cada vez mais turvo. Então despertou-se mas não se levantou, pensando naquele brilho levemente fosco, e imaginando como se sentiria se quando o grande momento chegasse (o que quer que fosse), um dos botões tivesse perdido um tanto de seu brilho inicial. Remoeu esse pensamento por dias e dias, aflito. E quando sua mãe deixou que usasse o terno, quase cedeu à tentação de desembrulhar só um pouquinho e ver se os botões, de fato, mantinham o brilho de sempre.

Ia galante a caminho da igreja, tomado por esse desejo rebelde. Pois saiba você que sua mãe permitia, com repetidos e cautelosos alertas, que ele usasse seu terno de vez em quando: aos domingos, por exemplo, para a igreja, desde que não houvesse sinal de chuva, tempestades de poeira, ou qualquer coisa que pudesse danificar o traje. Os botões deveriam continuar cobertos e as proteções firmes, e deveria levar sempre uma sombrinha para protegê-lo, caso o sol estivesse forte o suficiente para desbotar suas cores. Após essas ocasiões, ele sempre o limpava antes de guardá-lo outra vez, com o asseio que sua mãe lhe havia ensinado.

Todas as restrições impostas pela mãe para uso do terno eram obedecidas, ele sempre as obedeceu, até que uma noite acordou e percebeu o brilho da lua pela janela. O luar não parecia um luar comum, nem a noite parecia uma noite comum, e permaneceu deitado e sonolento por um tempo, refletindo sobre aquele sentimento. Um pensamento uniu-se a outro, como sussurros calorosos nas sombras. Sentou-se na pequena cama de repente, alerta, com o coração disparado e um tremor dos pés à cabeça. Estava decidido. Vestiria o terno como ele deveria ser vestido. Não lhe restavam dúvidas. Tinha medo, muito medo, mas sentia-se feliz, feliz.

Levantou-se da cama e se deteve por um instante na janela, observando o jardim invadido pelo luar, temeroso pelo que estava prestes a fazer. A noite estava tomada pelo canto sussurrado dos grilos, dos gritos quase inaudíveis dos pequenos seres vivos. Caminhou com cuidado pelo piso de madeira, temendo que o barulho pudesse despertar a casa adormecida, até o enorme e escuro guarda-roupas onde seu belo terno encontrava-se dobrado. Retirou peça por peça e, silenciosa e avidamente, arrancou os lenços de papel que cobriam os botões e as proteções até que lá estava ele, perfeito e encantador como na primeira vez que o viu, quando sua mãe o entregou. Parecia que havia passado tanto tempo. Nenhum botão havia desbotado, não havia sequer um fio fora do lugar em seu querido terno. Estava tão feliz que seus olhos se encheram d’água enquanto o vestiu, apressado. E então voltou, suave e veloz, para a janela com vista para o jardim, deteve-se ali por um instante brilhando sob o luar, com seus botões cintilantes como estrelas, antes de sair ao peitoril e, fazendo o menor barulho possível, arrastou-se até o jardim lá embaixo. Parou em frente à casa materna, branca e quase tão clara quanto era de dia, todas as cortinas fechadas como olhos adormecidos, exceto as dele. As árvores projetavam sombras imóveis, como um bordado intrincado nas paredes.

O jardim à noite era muito diferente do jardim de dia. O brilho da lua se emaranhava na cerca viva e se alongava pelas teias de aranha fantasmagóricas em cada ramo. As flores eram ou de um branco reluzente ou de um preto avermelhado, e o trinado dos pequenos grilos e os cantos dos rouxinóis escondidos na profundeza das árvores tornavam o ar estremecedor.

Não havia escuridão no mundo, apenas sombras cálidas e misteriosas, e todas as folhas e espinhos eram pontiagudos e cravejados de cristais de orvalho iridescentes. A noite estava mais acolhedora que nunca. Por algum milagre, o céu estava maior e mais perto e, apesar da grande lua marfim que dominava o mundo, o céu estava repleto de estrelas.

O menino não gritou nem cantou para comemorar tamanha alegria. Ele parou por um instante, estupefato, e então, com um estranho e silencioso choro, ergueu os braços e correu como se quisesse abraçar de uma só vez toda a imensidão do mundo. Ele não seguiu pelo caminho que cortava o jardim, mas cruzou os canteiros e a grama alta, úmida e perfumada, pelas matíolas e nicotianas, pelo aglomerado de malvas-brancas fantasmagóricas e pelo emaranhado de artemísias e lavanda, e afundou-se pelo grande campo de resedás que batiam em seus joelhos. Alcançou a enorme cerca-viva e abriu caminho, ainda que os espinhos dos pés de amora o tivessem machucado muito, arrancando fios do seu maravilhoso terno, e embora carrapichos e capim grudassem nele, não se importava. Não se importava, pois sabia que isso era parte de usar o terno, algo tão sonhado.

— Estou feliz por ter usado meu terno — disse. — Estou feliz por ter vestido meu terno.

Passada a cerca, alcançou o lago de patos, ou pelo menos o que seria o lago de dia. À noite, era uma grande tigela prateada de luar, ruidosa com o coaxar dos sapos, de um maravilhoso brilho que dançava e se detinha em formas estranhas, e o menino correu até as águas por entre a charneca escura, os joelhos submersos, a cintura, até que a água estivesse na altura dos ombros. Ele golpeava a água com uma das mãos até formar pequenas ondas escuras e brilhantes, pequenas ondas que oscilavam e brilhavam e capturavam estrelas com a rede dos reflexos entrelaçados das árvores na margem. Mergulhou antes de começar a nadar e atravessou até o lado oposto, arrastando-se, ao que parecia, não pelo musgo, mas sim por uma grande massa prateada pegajosa e gotejante. E seguiu pelo emaranhado transfigurado das lavandas e da grama alta na outra margem. Alcançou a estrada principal contente e ofegante.

— Estou feliz — declarou —, estou tão feliz por ter me vestido de acordo com a ocasião.

A estrada era reta como a trajetória de uma flecha, e culminava no poço azul escuro do céu além da lua, uma estrada branca e reluzente entre o canto dos rouxinóis, e ele seguiu, por vezes correndo e saltitando, outras caminhando e regozijando-se, vestindo as roupas que sua mãe havia feito com suas próprias mãos amorosas e incansáveis. A estrada estava coberta de poeira, mas para ele era apenas uma brancura suave. Conforme caminhava, uma enorme mariposa escura veio tremulando ao redor de sua silhueta, cintilante e apressada. A princípio, ignorou-a, mas logo estendeu-lhe as mãos e dançou com ela, enquanto a mariposa circundava sua cabeça.

— Delicada mariposa!  — murmurou. — Querida mariposa! Que bela noite, a mais bela noite do mundo! Acha minhas roupas bonitas, querida mariposa? Tão bonitas quanto suas asas e toda a roupagem prateada do céu e da Terra?

E a mariposa se aproximou mais e mais até que, finalmente, uma de suas asas aveludadas pincelaram os lábios do menino…

#

Na manhã seguinte, encontraram-no morto, com o pescoço quebrado, no fundo de uma pedreira, com seu belo traje um tanto ensanguentado, sujo e manchado pelo musgo do lago. Mas seu semblante era de uma felicidade tamanha que, se o tivesse visto, você teria compreendido de fato como ele morreu feliz, mesmo que nunca tenha visto aquele prateado frio e esvoaçante do musgo do lago.


Foto de Luísa Machado.

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